Em homenagem aos professores de Duque Bacelar e em memória da professora Francisquinha Leal falecida há 15 anos o Folha do Garapa publica o discurso proferido na missa de 7º dia de sua partida para Deus.
O DISCURSO QUE NÃO PODE SER PROFERIDO NO DIA
Um tributo a Francisco Leal Castello Branco
Quando a triste notícia do
falecimento de nossa mui amada Francisca Leal Catello Branco chegou à minha
casa, estava em meu quarto lendo e ouvindo as sinfonias de Beethoven. Ouvi suspiros
se juntaram as sinfonias. Atônito, deixei
a leitura, desliguei o gravador e nitidamente ouvi altos prantos de minha mãe.
Subitamente, minha mente foi invadida por pensamentos de uma realidade que eu
não queria saber. Saí do meu quarto, indo ao de mamãe. Ela estava no chão, chorando
angustiosamente a perda de sua mais íntima amiga. Sentei numa cama, e em choros
também, sentia a crucial dor da morte.
Nos minutos seguintes meus irmãos e os vizinhos foram chegando, e minha casa se
tornou um cenário dramático de lamentos.
O crepúsculo do dia estava se findando, e nós
sentíamos a dolorosa separação. Umas sete horas fui à casa do Sr. Miguel
Antero, ficando algumas horas ajudando na preparação da residência para a
chegada do corpo que vinha de Caxias. Quando ele chegou a nossa cidade, às 1:10
da madrugada, o carro que o trouxera parou primeiro em nossa casa. Mamãe gritou
tanto ao ver o caixão. O meu irmão Carlos Machado que veio de Coelho Neto,
avisado da tragédia, minutos depois a levou de carro para casa de seu Miguel.
Eu fui atrás, caminhando com minhas irmãs. Ao chegar, contemplei uma cena
indescritivelmente dolorosa. Uma das minhas maiores amigas estava sem vida,
dentro de um caixão.
Velei a madrugada inteira o
corpo de nossa amada. Quando a manhã chegou, às sete horas, fui com Flávio na
fazenda Ana Maria atrás de um livro de poesia, que julgava contém um poema para
incluir num discurso que pretendia escrever em homenagem a Dona Francisquinha.
Entretanto, quando voltemos da fazenda, não consegui suportar a dor que a morte
trás aos entes queridos. Minhas forças se esvaíram, esgotaram-se. E pela
primeira vez na vida, eu desmaiei. Os presentes me socorreram; levaram-me para o hospital, o doutor Marcus de
Andrade queria me hospitalizar, me dá um sonífero, mas eu não aceitei. Queria
escrever o discurso e acompanhar o cortejo fúnebre.
Já em casa, com poucas
forças, ainda esboçando os tópicos da elegia, ouvi uma voz da rua dizendo que a
multidão se aproximava da escola Dr. Paulo Ramos. Deixei os rabiscos, pedi carona
a um colega que passava de bicicleta na rua, e ele me levou até a escola. Ajudado
pelo amigo Didi, segui todo o cortejo que seguiu até a Igreja e ao Julião. Assim
não pude escrever naquele dia o discurso em homenagem à pessoa que marcou os
meus vinte anos de existência.
* * *
Nascida em 8 de Março de
1939, na vizinha cidade de Miguel Alves, Francisca Leal Castello Branco desde
criança foi mulher estudiosa. Ela fez seu primário em Chapadinha. Concluiu seu
ginásio em nossa cidade em 1975 no maravilhoso colégio Bandeirante. Sua turma
foi a primeira de toda a escola. Seus colegas a admiravam pela cultura e
inteligência.
“ - Ela sempre se destacou pela cultura geral”, disse conceição
Miranda, colega de classe, profissão e vida.
“ - Eu sabia bastante matemática e ela português. Quando estávamos
fracas num assunto, ajudávamos uma a outra”, declarou Graça Cordeiro, a maior autoridade
da disciplina em nossa cidade. Outras colegas do período eram Maria do Carmo,
João Vilar, Joaquim Torres, Helena Sampaio; as saudosas Dona Lurdina e
Gertrudes. Os professores eram pessoas cultas, como José Linhares, Rosemary
Furtado, Mariza Coutinho, Conceição do Eurico, tantos outros.
Após terminar o ginásio,
Francisquinha partiu novamente para Chapadinha fazer o normal. Concluindo-o em
1978, técnico em habilitação em magistério. Queria continuar os estudos e fazer
faculdade de medicina. As circunstâncias, entretanto, a impediram de realizar
seu grande sonho.
Voltando para nossa cidade,
recomeçou o exercício de sua profissão. O amor, inteligência e criatividade
envolvidas em seu ofício, a transformaram em um dos vultos de nossa história
educativa e social. Ela dedicou sua vida, seus talentos à educação de nossas
crianças, nossos jovens e adultos. Um bem que jamais será retirado da vida de
milhares de pessoas que passaram pôr suas mãos.
No decorrer dos anos de profissão,
ela lecionou várias disciplinas: português, didática, estágio, religião, artes,
etc. Encerrou sua carreira com filosofia, a ciência das ciências, a mesma que
trabalhara há alguns anos. Sua última aula dada dois dias antes do incidente
que a levou a morte, chamada “A existência da Reflexão Filosófica”, foi
proferida com tanta sabedoria, que seus alunos, 40 ao todos, ainda pensam nos
comentários ditos por ela. Uma das reflexões lançadas na aula foi a realidade
da morte. Ela disse que nossa vida é tão incerta em relação a sua duração,
sendo que podemos partir em qualquer hora. Falou que estava lecionando naquela
noite de sexta- feira, mas na segunda-feira poderia não está mais.
Por que justamente este
tema?! Será que Deus estava lhe conscientizando de que seus dias findavam-se, e
que a queria para si?
Amigos presentes:
Devo, também, ressaltar a
figura humana que fora Francisca Leal Castello Branco. Mulher humilde e
servidora soube lavar os pés do próximo de uma maneira excepcional. Sempre
compartilhou o que tinha com os outros. O dinheiro do seu trabalho era muitas
vezes mais gasto com seu semelhante do que com ela mesma. Ao nos deixar, nos
presentes dias, ajudava quatro famílias, dando-lhes constantemente o pão
cotidiano.
Em 1992, ela se candidatou a
vereadora. Seu propósito eleita era trabalhar com as crianças pobres de nossa
cidade. Queria construir uma creche para abrigá-las e educá-las, porém, não
conseguiu uma vaga no legislativo. Sempre nos dizia, em sua crença, ter sido
eleita, mas o nosso sistema político sujo roubara os seus votos.
Digo-vos que essa cidade
perdeu uma grande mulher, uma grande educadora, uma grande amiga. Ela amou essa
cidade e sua gente, apesar de diversas vezes ser injustamente criticada,
maltratada, incompreendida. Minha mãe perdeu uma grande amiga; sua maior amiga.
Minha família perdeu àquela que foi sua mais sincera e leal companheira. Particularmente
perdi uma grande amiga.
Dia 12 de Abril, data de sua
partida para Deus. Neste dia completaram dois meses que voltei de São Luis.
Deste o ano passado ela estava novamente passando mais uma das suas temporadas
lá em casa. Os dois meses então fizeram nossa amizade se aprofundar muito. Tornemos-nos
confidentes, nos respeitando mutuamente.
Dona Francisquinha foi minha
professora alguns dias na primeira série do primário, supervisora de regência
quando estagiei como professor em formação, no magistério. Ela também foi minha
madrinha de formatura.
O que contribuiu para nossa
amizade eram nossos gostos comuns, desejos e comportamentos parecidos. Fomos os
indivíduos mais criticados e taxados de loucos por muitos nesta cidade.
Amávamos botânica. Trocávamos mudas de várias espécies de plantas;
conversávamos sobre a fisiologia das mesmas, estudávamos as pétalas, as folhas
e admirávamos o resplendor das flores, seus aromas e formosuras. Toda a
natureza nos encantava: os animais, os rios, a chuva, o vento. Uma tarde
singela e poética. Ela era uma das pouquíssimas pessoas na cidade no qual se
podia manter uma conversa intelectual. Um dia me contou que quando jovem,
decorou o nome de todos os ossos do esqueleto humano. Também discutíamos sobre
literatura, línguas, biologia, geografia, história, poesia, política e música. Gostávamos dos clássicos: os
concertos, as óperas, os cantos de corais, as músicas folclóricas e sacras. Ela
tinha uma voz bonita, educada nos anos que cantara no coral da Igreja Católica
de Chapadinha. Gostava quando cantava trechos de música em latim. Cantávamos
juntos. O clássico “ Ave Maria”, do compósito Franz Schubert e o popular louvor
“ Cantai ao Senhor um Cântico Novo ”, em
espanhol e português, eram os que mais gostávamos. Apesar de ser evangélico e
ela católica, nossa amizade era ligada por Cristo, somente Nele.
Oh, que dor! Que saudades
sinto agora de nossa Francisquinha. Ela só me chamava de Neném devido ser eu o
mais novo de casa.
Ela foi uma mulher cristã,
que dedicou sua vida a Deus; ao seu sobrinho Werdem, aos seus amigos e alunos.
Nunca se casara. Quando criança perdera seu grande e primeiro amor. Ele partiu
tão cedo para o outro mundo, lhe deixando marcas profundas. Rui, assim se
chamava seu amado.
Praticou sua religião desde
criança, e quando a morte montada a galope veio e levou minha amiga, como diz
Carlos Drummond de Andrade, ela tinha acabado de ler a II leitura da liturgia
do dia 11 de Abril de 1999, encontrada no livro de I Pedro, capitulo I,
versículo 3 a 9, que diz:
- “ Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Em sua grande
misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez
nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que
não se mancha nem murcha, e que é reservada para vós nos céus. Graças à fé, e
pelo poder de Deus, vós fostes guardados para a salvação que deve manifestar-se
nos últimos tempos. Isto é motivo de alegria para vós, embora seja necessário
que agora fiqueis por algum tempo aflitos, por causa de várias provações. Desde
modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira, mas preciosa que o outro
perecível, que é provado no fogo, e alcançará louvores, honra e glória no dia
da manifestação de Jesus Cristo. Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver
ainda, Nele acrediteis. Isso será para vós fonte de alegria indizível e
gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação. Palavra do
Senhor. ”
Juntamente com o texto
bíblico ela fazia os seguintes comentários:
- “ Não devemos acreditar apenas no que vemos. Temos que ter fé em Deus.
Na vida acontecem muitas coisas que nos deixam tristes, mas através da fé
renovaremos nossas alegrias, sorriremos e cantaremos. As coisas de Deus são
eternas, não tem fim. O sol feito por ele dura para sempre. As coisas do homem
acabam-se aqui. A lâmpada feita pelo homem acaba aqui. Devemos agradecer todas
as circunstâncias que veem para a gente. Não vamos agradecer apenas o que
achamos bom, mas sim o que acharmos o que é ruim também.”
Depois disso ela deixou o
altar e foi para seu banco. Tentou sentar, mas foi atingida, um derrame. Já vinha sentido sintomas de dormência e
dores no corpo. O organismo avisando.
Amigos, sentiremos ainda
muitas saudades de nossa querida Francisquinha. Contudo alegremo-nos com a
esperança de que ela está com Deus. Ele disse para não me preocupar, pois ela
esta consigo.
Minha sobrinha Thaís, de quatro
anos, vendo mamãe chorar, lhe disse:
- “ Não chore vovó. A Francisquinha tá no céu, cantando assim: amém,
amém, amém. Sim, agora ela canta um cântico novo na presença do Senhor ”.
Duque, 18.4. 1999
Proferido na missa de 7º dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário